O revoltado: Camus


O revoltado, sem dúvida, exige para si um certo grau de liberdade. Mas, se ele é alguém consistente, não reclama, em nenhuma circunstância, o direito de destruir a existência e a liberdade de outros. Ele não humilha quem quer que seja. A liberdade que ele reivindica, ele a quer para todos. A liberdade que ele recusa, a todos ele proíbe que dela usufruam. Ele não personifica apenas o servo contra o senhor, mas também o ser em oposição ao mundo baseado em servos e senhores. Assim, graças à rebelião, há algo na história além da relação entre dominação e servidão. E o poder ilimitado não é a única lei. É devido a outro bastião [que não o poder] que o revoltado prega a impossibilidade da liberdade total, ao mesmo tempo que exige para si o tanto de liberdade que é imprescindível para que se atinja o reconhecimento daquela impossibilidade.
O revoltado
Alberto Camus
versão em português por Mariangela Pedro

PARA ENTENDER

Camus recorre a um modo complicado de dizer que o revoltado legítimo (na concepção dele mesmo, Camus) não quer a liberdade total. Ele aceita restrições à liberdade por ter reconhecido o Outro.

Declarar que se reza para que alguém "descubra Deus em seu coração" ou para que "se converta" é ferir tal princípio de liberdade. Justificar tal "oração" alegando que se quer o bem daquela pessoa, que se tem "compaixão" por ela é hipocrisia e fanatismo. Seria fundamental que se entendesse que quem faz isso não conquistou a liberdade para si - é um servo, sem o reconhecer.

Em decorrência, deveríamos, ao menos à guisa de argumentação lógica, admitir que um servo, como definido aqui, não tem como alegar que age em nome da liberdade.

Em outras palavras, não é livre todo aquele que, p.ex., não aceita que alguém não acredite em Deus. E, se ele alega que pode proclamar seu pensamento por ter direito à... liberdade de expressão, ele não entendeu Camus; tampouco entendeu Jesus. Declarar-se cristão é uma coisa. Seguir Jesus é bem outra coisa.

Não é, dito isso, tão difícil de entender por que o conceito de revoltado, segundo Camus, parece incompreensível para muitos, muitos seres.

Segundo aquele conceito, limite à liberdade de expressão. E não há liberdade ao se reclamar direitos que afrontam a existência de outros, como "direito" a fumar, a abortar, a afirmar que o ateu está "perdido" ou algo do gênero.
Mariangela Pedro